Notícias
O cupuaçu é um invento. Estudos científicos recentes concluíram que o fruto com polpa de sabor cítrico intenso, dulçor enigmático e textura cremosa é resultado de um cuidadoso processo de escolha humana. Foram os ancestrais amazônicos os responsáveis pela criação, obtida com base nos frutos do cacau, dos quais o cupuaçu guarda evidente semelhança – pesquisas genéticas apontam uma similaridade de até 65% entre eles.
De acordo com indicação de Antônio Fernandes Góes Neto, linguista, professor da Universidad Simón Bolívar (Equador) e pesquisador em educação indígena, a palavra Cupuaçu, em Tupi Antigo, pode ter como tradução “grande árvore da abelha kupy”, sendo ‘kupy’ as abelhas pretas sem ferrão (dicionário de Tupi Antigo, Eduardo Navarro). O cacaueiro não atrai esse tipo de polinizadores. A flor do cupuaçu, sim.
No contemporâneo, a inovação segue, mas tem resultados de outra ordem. O fruto é o carro-chefe de uma das principais e mais longevas iniciativas da sociobioeconomia amazônica, a Associação e Cooperativa Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado (RECA), localizada no distrito de Nova Califórnia (RO), na Ponta do Abunã, região fronteiriça com Acre, Amazonas e a Bolívia e distante 360 quilômetros da sede administrativa do município a que pertence, a capital Porto Velho.
A localidade, que em 2025 completa seus 40 anos, tem no RECA, oficialmente criado em 1989, o motor de fortalecimento da comunidade, gerando uma economia atrelada à conservação da biodiversidade em uma região disputada por modos de exploração nem sempre alinhados com os princípios de manutenção de floresta em pé.
Fruto que transita
Das matas, os cupuaçuzeiros passaram a ser plantados nos quintais das famílias, principalmente dos extrativistas que dele se alimentavam e, posteriormente, a integrar cultivos consorciados com outras espécies nativas, já com o intuito de estabelecer produção em escala.
Foi a partir dessa prática que o RECA se consolidou, convertendo-se em um dos maiores polos de produção de cupuaçu do planeta. O método, construído coletivamente, transformou-se ainda em referência internacional para produção de alimentos através de Sistemas Agroflorestais (SAFs).
De forma direta e indireta ao menos 3 mil famílias são impactadas, com aproximadamente 200 produtores cooperados contando com o beneficiamento que transforma frutos e sementes da biodiversidade amazônica – entre eles açaí, castanha-do-brasil, andiroba, copaíba e em menor escala frutas, como o maracujá. goiaba e a graviola – em polpas, óleos, manteigas e até farinha. Das polpas congeladas, 70% são de cupuaçu.
Mais recentemente, doces e geleias entraram para esse variado portfólio de produtos. São novidades o ‘Cupulate’, versão do chocolate 65% cupuaçu e o mel, já vencedor de prêmios de qualidade no estado de Rondônia. O palmito em conserva, resultante do cultivo da pupunha, é outro produto de destaque que segue avançando pelos mercados regionais.
Atualmente, 40% da produção conta com certificação orgânica (polpa de cupuaçu, polpa de açaí, palmito de pupunha em conserva, óleo de andiroba, óleo de castanha-do-brasil e manteiga de cupuaçu), com especificidades do selo fornecido pelo IBD (Instituto Biodinâmico), que possibilitam a comercialização para mercados dos Estados Unidos e União Europeia.
Pelo menos R$10 milhões por ano são faturados – cerca de 70% desse montante se reverte em renda aos produtores rurais locais, que ganham de acordo com a sua produção individual.
Solo de urgências comuns
A Ditadura Militar brasileira (1964-1985) favorecia quem ocupasse o território amazônico oferecendo terras e incentivando o desmate como forma de aprofundar a ‘colonização’ da floresta. Antes, outras ondas produtivas já haviam levado aos estados da Amazônia milhares de homens e mulheres, principalmente nordestinos, atraídos pelas possibilidades de prosperidade através da extração do látex nos seringais, atividade que encontraria seu declínio após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Nova Califórnia é resultado desse fluxo.
Sérgio Lopes é um exemplo. O produtor saiu com a esposa de Curitiba (PR) com o objetivo de viver da terra. Em 1986 chegou à Ponta do Abunã depois de deixar o sul do Amazonas, onde o asfaltamento da BR-364 havia elevado os preços dos terrenos em mais de dez vezes. “Eu primeiro trouxe café para plantar, já pensando em distribuir para os vizinhos e criar uma cadeia”, explica. Sua propriedade atualmente é a maior e mais antiga do RECA em atividade, com 130 hectares de agroflorestas sobre áreas antes degradadas – uma parte pertence à sua filha, também produtora e cooperada, O local guarda, ainda, 80 hectares de floresta nativa.
Arnoldo Berkembrock veio de Santa Catarina e lembra dos tempos em que a produção precisava ser carregada nas costas pelos produtores, que também penavam com a escassez de conhecimento. “Acontecia de alguns tentarem pegar o cupuaçu verde no pé, porque não se sabia que o fruto caía quando estava maduro”, relembra. Sua maior intenção era garantir um futuro para a família – atualmente sua filha, Jersiane, segue os passos agroflorestais.
Já dona Aldênia dos Santos Gama, a primeira coordenadora mulher da Cooperativa, chegou a Nova Califórnia em 1973, para se casar. Seu pai veio para os seringais amazônicos em busca de trabalho na década de 40, e formou família. Ela viu a chegada dos forasteiros, principalmente da região Sul e do estado do Mato Grosso, com desconfiança. Porém, com o tempo, percebeu que trocar com eles poderia ser mais vantajoso.
Nos espaços de socialização do então povoado de Santa Clara, o assunto mais compartilhado era como ampliar a produção local de um jeito que pudesse favorecer a todos, além de melhorar as condições de vida da comunidade – que sofria com a falta de estrutura e a ameaça da malária, o que fez muitos desistirem da empreitada. Era essa a necessidade comum mais urgente. E a solução veio da observação do território.
A metodologia, empírica, levou as atenções para os quintais agroflorestais dos extrativistas que já habitavam a região e produziam cupuaçu e outros frutos, como o açaí, muitas vezes nos limites da floresta. Começaram então os primeiros experimentos, em processos de troca entre os recém-chegados e os locais.
As castanheiras foram plantadas inicialmente com a intenção principal de valorizar as terras – ação que, esperava-se, poderia gerar algum tipo de crédito no futuro, já que trata-se de uma espécie protegida por lei. Atualmente, o RECA produz entre 10 e 15 toneladas de óleo de castanha-do-brasil por ano.
“Uma vez, a gente tinha só dez sementes de pupunha e aí um de nós foi lá e comeu uma das sementes. Isso virou uma história que dura até hoje”, explica, humorado, Raimundo Félix de Souza, o Koité, dando a dimensão dos desafios para chegar ao formato de modelo produtivo atual.
As sementes chegavam em número contado à região, e eram tratadas como verdadeiras joias. Assim como no caso de Sérgio e Arnoldo, Koité teve a oportunidade de trabalhar junto com seu filho em sua propriedade. Aliás, todos os pioneiros do RECA escutados por ((o))eco – na faixa dos 70 anos – são produtores cooperados ainda ativos.
Floresta para comer
Os Sistemas Agroflorestais são modelos de produção que combinam árvores, cultivos agrícolas e, em alguns casos, criação de animais, de forma planejada e interdependente. Inspiram-se nos processos ecológicos das florestas nativas para criar ambientes mais equilibrados, férteis e resilientes.
Essa integração promove o aproveitamento eficiente da luz, da água e dos nutrientes, ao mesmo tempo em que recupera solos degradados, protege a biodiversidade e contribui para o sequestro de carbono. Os SAFs aumentam e diversificam a produtividade, que é adensada (mais produção em menos espaço), reduzem impactos ambientais e fortalecem economias rurais baseadas na conservação dos ecossistemas.
Nos SAFs do RECA são consorciadas mais de 40 espécies, entre frutíferas e madeireiras – cada produtor cultiva pelo menos três, sendo a junção de castanha-do-brasil, cupuaçu, açaí e pupunha a mais comum. Ao caminhar pelos SAFs mais antigos, a paisagem efetivamente assemelha-se a de uma floresta, com diferentes estratos de vegetação.
O formato de sucessão dos plantios garante o ganho financeiro, enquanto culturas que levam anos para iniciarem sua produção se desenvolvem plenamente. No caso do cupuaçu, esse tempo de espera pode chegar a dez anos.
A escolha agroflorestal, que é cheia de complexidades e pede uma dedicação de médio a longo prazo, amadureceu juntamente com a consciência ambiental na formação de Nova Califórnia.
“Nós só escutávamos sobre Chico Mendes, mas não tínhamos muita noção do que era a luta dele. Os meios de comunicação locais naquele período informaram a questão de forma distorcida. Mas quando entendemos do que se tratava, muito graças às formações dos Movimentos Eclesiais de Base ligados à Igreja Católica que atuavam na região, percebemos que o que nós fazíamos também era lutar pela floresta. E nos juntamos à luta dele”, conta Sérgio Lopes.
Frutos da inventividade
À beira da BR-364, no quilômetro 1071, a sede do RECA comporta hoje uma planta com cinco agroindústrias e maquinários para o beneficiamento e envase de todos os seus produtos, além de uma loja e uma sede administrativa. O espaço também agrega dois barracões de compostagem, um viveiro onde são produzidas anualmente mais de 40 mil mudas, um galpão de fermentação, um laboratório a céu aberto para melhorias das matrizes de cupuaçu e uma área de convívio – onde acontecem as festas e encontros de associados e cooperados, sempre regadas a muito forró.
Para chegar aos produtos finais – como as pelo menos 50 toneladas anuais de manteiga de cupuaçu vendidas a grandes marcas de cosméticos – é necessário um processo rigoroso em campo, que mobiliza centenas de pessoas diretamente em atividades de plantio, manejo (principalmente, já que a maioria das culturas são permanentes) e colheita ou coleta sobretudo nos períodos entre dezembro e abril, época posterior à queda do cupuaçu e da castanha-do-brasil ao solo. Enquanto os aproximados 1000 hectares de SAFs se agitam com as coletas e colheitas, o número de funcionários no beneficiamento dobra, passando dos usuais 51 para até 130.
O incentivo governamental direto para essa colossal operação é nulo e escassos são os aportes institucionais, sendo a Política de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), ambas federais, os mais importantes meios de suporte através de políticas públicas acessadas pela Cooperativa.
“Além da falta de investimento, os estudos científicos para o desenvolvimento dos produtos da floresta ainda são insuficientes, principalmente levando em conta que precisamos resolver problemas reais para a nossa produção – não temos tempo para sermos cobaias… É completamente desproporcional em relação aos investimentos para as monoculturas, como a soja, por exemplo”, explica Gicarlos Souza de Lima, diretor comercial do RECA.
Ele cita como exemplo o desenvolvimento do galpão de compostagem, que hoje permite a produção de composto orgânico em quantidade suficiente para todos os produtores cooperados utilizando as cerca de 350 toneladas de substratos gerados anualmente pelas agroindústrias de beneficiamento.
O projeto, que tem sete anos, teve um salto técnico em 2025 ao sanar o problema do chorume excessivo absorvido pelo solo, além das intempéries naturais que atingiam as leiras a céu aberto, com a construção de dois galpões com um total de 1600m2. Cisternas para captação da chuva e um sistema para o filtragem de chorume – que é novamente lançado ao composto orgânico, enriquecendo-o, para que volte às agroflorestas – foram agregados ao projeto original e também fazem parte da tecnologia desenvolvida localmente.
O mesmo se dá com a maioria do maquinário utilizado nas agroindústrias: tudo precisou ser adaptado ou criado do zero para atender às necessidades específicas da produção – que, ainda assim, segue com uma considerável quantidade de processos manuais.
Em agosto de 2025 foi sancionado o Projeto de Lei nº 847/2025, que assegura às cooperativas o acesso direto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte de financiamento de pesquisas e projetos de inovação no país. A nova legislação corrige uma antiga limitação, já que apesar do potencial inovador, as cooperativas não podiam acessar diretamente os recursos do Fundo por barreiras jurídicas. Com a lei, passam a ter os mesmos direitos de empresas, universidades e institutos de pesquisa.
Os dados oficiais sobre a produção de cupuaçu no Brasil ainda apresentam fortes fragilidades estatísticas, refletindo a informalidade da cadeia produtiva e a falta de padronização nas coletas. Levantamentos do IBGE e da Pesquisa Agrícola Municipal (PAM) mostram discrepâncias entre estados e anos, com grande parte da produção concentrada em pequenos agricultores familiares, frequentemente fora do registro formal.
Estudos como o da Embrapa e BID sobre a bioeconomia do Pará reforçam que a defasagem temporal e a subnotificação limitam o planejamento de políticas públicas e o fortalecimento das cadeias da sociobiodiversidade amazônica.
De acordo com os números oficiais do IBGE, em 2017 a produção de cupuaçu no Brasil atingiu 21.240 toneladas, com valor de R$ 54.822 mil e uma área colhida de 13.504 hectares – a Bahia é apontada como o estado com a maior produção.
Investimento favorece reinvenção
A implementação de projetos do Programa Comunidades Tradicionais, Povos Indígenas e Áreas Protegidas nos Biomas da Amazônia e Cerrado (COPAÍBAS) financiado pela Iniciativa Internacional da Noruega para Clima e Florestas (NICFI), sob gestão do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO), deu novo fôlego à frutificação – especialmente pelo fortalecimento de suporte técnico aos produtores em campo, revitalizando 800 hectares de SAFs.
No período 2024/2025 a safra do fruto do cupuaçuzeiro bateu recorde. Foram mais de 2 milhões de quilos de fruto bruto frente aos 1.3 milhões do ano anterior. A produção foi escoada, transformada principalmente em manteiga e óleo para cosméticos. “Se a safra fosse maior, nós teríamos mercado. Demanda não falta”, explica Gicarlos Souza.
Em operação desde 1996, o FUNBIO é uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) dedicada a impulsionar iniciativas voltadas à conservação e ao uso sustentável da biodiversidade brasileira. Atuando em consonância com as diretrizes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a instituição tem como missão mobilizar e direcionar recursos estratégicos para a preservação do patrimônio natural do país.
O “Cooperar para avançar”, projeto do Programa COPAÍBAS criado com o RECA após seleção por chamada pública faz parte do componente do Programa voltado a fortalecer os arranjos produtivos da sociobiodiversidade, neste caso com foco na região da Ponta do Abunã. A ideia é elevar a renda e a qualidade de vida de produtores familiares, com atenção especial a jovens e mulheres. O aporte total para um período de implementação de dois anos é de R$ 4,75 milhões, e o encerramento do projeto está previsto para novembro de 2025.
Estruturado em quatro eixos – governança, gestão, produtividade e acesso a mercados –, a iniciativa realiza ações para aprimorar sistemas produtivos e abrir novas oportunidades para produtos agroflorestais, florestais não madeireiros e orgânicos. Com uma implementação participativa entre atores locais, se coloca como alternativa sustentável ao avanço da fronteira agrícola, à pecuária extensiva e à exploração ilegal de madeira, contribuindo para conter o desmatamento, as queimadas e as emissões de Gases de Efeito Estufa.
O investimento já foi utilizado para sanar necessidades como a construção dos galpões de compostagem, o maquinário para produção de mel e Cupulate e o laboratório a céu aberto que busca o melhoramento das matrizes de cupuaçu, além de um projeto-piloto de SAF irrigado e outras iniciativas de cunho administrativo.
Mas foi a revitalização dos SAFs a ação decisiva, de acordo com os produtores locais ouvidos por ((o))eco, para o drástico aumento produtivo. É o caso de Edson Apolinário. Em seu SAF é possível ver castanheiras se desenvolvendo em meio a já maduros açaízeiros e outras árvores lenhosas, como a copaíba. Entre os principais desafios cotidianos está a contenção da “fauna faminta”, principalmente roedores que podem causar danos sobretudo às mudas, além da falta de nutrição de algumas árvores e das pragas nos cupuaçuzeiros.
“Nesses dois anos, a partir de um manejo mais cuidadoso e ajuda de mão de obra, saímos de 40 sacas para 200 sacas de cupuaçu”, relata. O SAF e a criação de gado formam a renda da família de Apolinário, que também atua como extrativista, coletando castanha-do-brasil floresta adentro. “A sensação é de orgulho de ver essa diversidade, todas essas árvores, e saber que a maioria fui eu que plantei. Mas as melhorias não podem parar de acontecer porque esse também é o nosso sustento”, declara.
“A poda é especialmente importante para o cupuaçu porque esse manejo, feito corretamente, além de melhorar a saúde da árvore também faz com que ela se desenvolva com menos altura, o que possibilita que a produção aconteça em menos tempo e os frutos sofram menos danos quando caem”, explica Thiago Berkembrock, técnico responsável pelos manejos dos SAFs da Cooperativa. Também para ele, a ampliação desta atividade e dos outros manejos foram centrais para que os números da produção agroflorestal disparassem.
Alcançar resultados tão facilmente mensuráveis só foi possível através de uma integração do projeto à governança da Cooperativa, que realiza mensalmente encontros com seus coordenadores – foram mais de 170 capacitações oferecidas, em escuta direta às necessidades indicadas pelos produtores, além de trocas com associações e instituições locais, chamadas a pensar alternativas para a região.
“Os impactos das mudanças climáticas são sentidas pelos produtores no dia a dia, seja na mudança do regime de chuvas, com períodos mais longos de estiagem, que impactam na floração e na produtividade dos plantios, seja na falta de água nas propriedades”, explica Rocio Chacchi Ruiz, gestora ambiental que atuou diretamente na implementação do projeto “Cooperar”.
Esses fatores, além do convívio com a fumaça das queimadas com seus consequentes problemas respiratórios, funcionam como fontes de sensibilização para a importância dos SAFs como sistemas produtivos promotores de biodiversidade e renda. “As outras organizações locais envolvidas podem ver que existem alternativas, que os SAFs são viáveis economicamente, podem funcionar e melhorar essa realidade regional considerando também suas várias funções ecológicas”, completa Rocio.
Os outros valores da floresta em pé
Estudo do WRI (World Resources Institute) estima que o PIB atual da bioeconomia amazônica gira em torno de R$ 12 bilhões para um conjunto de 13 produtos nativos em relação aos quais há dados considerados confiáveis. Com investimento adicional e políticas públicas favoráveis, esse valor poderia saltar para cerca de R$ 38,5 bilhões até 2050, gerando centenas de milhares de empregos e reduzindo a dependência econômica de atividades ilegais com alto impacto ambiental, como desmatamento e pecuária predatória – hoje os maiores emissores de Gases do Efeito Estufa (GEE), causadores do aquecimento global, do país.
O Brasil instituiu em junho de 2024 a Estratégia Nacional de Bioeconomia por meio do Decreto nº 12.044, que define diretrizes para promover o uso sustentável da biodiversidade, inovação, inclusão social e geração de trabalho e renda, integrando saberes tradicionais e científicos. Para operacionalizar essa estratégia, foi criada a Comissão Nacional de Bioeconomia (CNBio), que elabora o Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia (PNDBio) com metas, indicadores e fontes de financiamento, ainda em fase final de construção.
Em outra frente, compromissos financeiros recentes mostram uma mobilização pública internacional concreta, mas ainda limitada frente ao potencial florestal. Exemplos incluem uma linha de crédito de US$ 250 milhões anunciada pelo Banco do Brasil em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para projetos de bioeconomia na Amazônia e o Amazon Bioeconomy Fund (US$ 598 milhões) do Green Climate Fund, voltado a aumentar o fluxo de investimento para bioempresas e cadeias produtivas locais.
Mesmo com todos esses influxos e anúncios, os circuitos da bioeconomia amazônica seguem marcados pela informalidade, restando às comunidades a consolidação de arranjos não exploratórios nas negociações junto ao mercado para que siga se desenvolvendo.
Zona de resistência
“Nós estamos na AMACRO (área ambientalmente ameaçada nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia), uma região que tem esse desafio do desmatamento bastante presente. Por isso, o processo de conscientização dos produtores locais é tão importante”, explica Gabriel Figueiredo da Silva, coordenador do Projeto de Carbono do RECA.
Entre 2019 e 2022, afirma, foi possível notar uma diminuição drástica da fiscalização ambiental, o que gerou uma escalada destrutiva na região.
A percepção tem comprovação em dados. Um estudo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) revela que políticas ambientais flexíveis e a fiscalização ineficaz aceleraram a degradação ambiental no estado de Rondônia nos últimos seis anos.
A pesquisa cita leis estaduais, como as de 2020 e 2021, que reduziram áreas protegidas e flexibilizaram licenciamentos, e aponta que Rondônia perdeu cerca de dois mil quilômetros quadrados de áreas protegidas entre 2018 e 2022, com aumento de 20% no desmatamento em unidades de conservação e de 37% nas queimadas, que totalizaram mais de 12 mil focos apenas em 2022.
Como agravante, a capacidade fiscalizatória minguou, com a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental tendo mais de 60% de seus quase 500 servidores em cargos comissionados, sem concurso público desde 2014. Também em 2022, o município de Porto Velho, que oficialmente contempla o distrito de Nova Califórnia, chegou a atingir o posto de segundo maior em emissões de Gases do Efeito Estufa do Brasil.
“Nosso projeto de crédito de carbono, que vinha apresentando bons resultados, zerou o ganho para os produtores nesse período. Infelizmente, percebemos que não estava claro que cada um precisava manter as suas responsabilidades para que todos ganhassem com a conservação”, completa Figueiredo da Silva. As capacitações e vivências voltadas à conscientização ambiental – que incluíram a visita a dez escolas da região – são apontadas por ele como um destaque do projeto implementado junto ao Programa COPAÍBAS e ao FUNBIO.
A Ponta do Abunã, por suas características fronteiriças, é um território fértil para atividades de exploração ilegal da floresta. Os conflitos socioambientais – envolvendo desmatamento ilegal, uso irregular do fogo, grilagem de terras e disputas por jurisdição territorial têm escalado na região. Entre as iniciativas de combate, o IBAMA aplicou nos últimos meses a chamada “Operação Maravalha”, com multas que já somam cerca de R$ 11 milhões e a apreesão de mais de 4000 m³ de madeira ilegal.
Dirigentes da Cooperativa já foram ameaçados, por suspeita de terem feito denúncias. Porém, os atritos são raros, principalmente pelo papel de agregador social exercido pelo RECA junto à comunidade – onde a maior parte das ações de melhoria costuma ocorrer na forma de mutirão, sem o apoio do poder público.
Também crescem os alertas para as chamadas queimadas culturais. Sob os efeitos das mudanças climáticas, essas queimas podem atingir grandes áreas e marcar negativamente a realidade das populações tradicionais. Foi o que aconteceu na TI Kaxarari.
Zilma Kaxarari explica que um de seus parentes estava fazendo o uso do fogo como de costume, mas a forte seca de 2024 trouxe consequências inesperadas. “Muitas castanheiras foram queimadas, foi uma grande perda para a nossa comunidade”, conta. “Agora nós estamos buscando replantar a nossa floresta, usando as mudas que eles [o RECA] fazem. Além disso, também queremos aprender a utilizar os conhecimentos para produzir alimento, para juntar com os nossos conhecimentos ancestrais”, detalha.
A castanha-do-brasil é um ativo econômico importante para a comunidade indígena, mas as negociações com o mercado por lá ainda levam a arranjos considerados desfavoráveis, sobretudo na venda aos atravessadores – comerciantes que fazem a compra e a venda de produtos da biodiversidade amazônica, na maioria das vezes de maneira informal. Recém cooperada, ela espera conseguir, além de reflorestar, estabelecer relações comerciais mais justas e que ajudem na resistência de seu território, cercado pelas ameaças do avanço agropecuário na região.
Futuros regenerados
“Um dos aspectos importantes da governança aqui é possibilitar o crescimento das mulheres e garantir que ocupem espaços de poder. Mesmo que às vezes em campo possa ser mais desafiador – já que o meu trabalho acontece de forma bastante direta com os produtores – sei que é uma forma de também ser referência para outras jovens”, explica Taysa Macedo, coordenadora técnica do RECA. Assim como Taysa, todos os dirigentes técnicos do RECA escutados pela reportagem têm menos de 30 anos de idade. A grande maioria é filha ou até neta de produtores.
A escolha faz parte da visão de futuro da Cooperativa, onde netos dos pioneiros que seguem atuando na produção agroflorestal ou trabalhando nas atividades técnicas e administrativas recebem a alcunha de “terceira geração”. “Uma parte do nosso trabalho é manter esses jovens no território, oferecendo uma alternativa para que ele não precise ir embora“, completa Taysa.
Foi exatamente num momento de despedida, ao ver o filho saindo de casa para estudar em outra cidade, que a pioneira Aldênia Santos Gama – que hoje, aos 76 anos, orgulha-se de ter se formado em letras aos 61 – decidiu que era preciso criar algum jeito de evitar que aquela história se repetisse. A liderança articulou-se com o bispo local e outros representantes da comunidade. Essa coletividade conquistou a criação, em 2010, da Escola Família Agrícola (EFA) Jean Pierre Mingan em Acrelândia, cidade vizinha do outro lado da fronteira com o Acre.
O modelo educacional inovador da escola, conhecido como Pedagogia da Alternância, intercala períodos de estudo em sala de aula com vivências práticas na comunidade, visando a formação integral dos jovens, que se formam como técnicos em agropecuária.
No caso da Jean Pierre Mingan, os estudantes ficam na escola por quinze dias consecutivos, assistindo a aulas e também fazendo atividades de manejo e cultivo. Eles são incentivados a realizarem experiências de caráter pedagógico nas propriedades rurais de suas famílias nos quinze dias que ficam em seus lares antes de retornarem novamente para a quinzena de imersão formativa. Essa é a escola por onde passaram todos os jovens gestores atuais do RECA e o espaço para onde eventualmente retornam, agora com a função de compartilhar conhecimentos.
O estudante João Vitor da Silva Novais, 17, conta sobre a frustrada tentativa de produzir um SAF em uma parte do vasto terreno da escola, que é tomado por diferentes tipos de plantios. Com os colegas Nicolas Guilherme da Silva, 17, Paula Fernanda da Silva Souza , 17 e Juliano César da Costa de Lima, de 19 anos, João conta que faltou a eles atino de fazer uma detalhada análise do solo antes de escolher o local do Sistema Agroflorestal. Alguns pés de Andiroba até sobreviveram, mas o experimento não deu certo.
“O que aconteceu foi que era um terreno muito argiloso. Então quando o tempo estava mais seco, a terra acabava rachando e, durante as chuvas, o solo não absorvia a água, porque a terra molhada ficava compactada. Mas foi bom porque aqui é uma escola e esse é o melhor lugar para a gente errar. Sem experimentar, a gente nunca saberia da nossa própria falta de conhecimento”, ensina.
A lição lembra os anos de experimentação dos produtores locais até encontrarem uma alternativa para produzir e florestar nutrindo o solo mas também as pessoas da comunidade, garantindo a subsistência e criando uma alternativa concreta ao desmatamento na região. Já as paisagens que foram desenhadas pelos Sistemas Agroflorestais – que agora também podem ser apreciadas quando se transita pelos ramais da região – cumprem ainda mais uma tarefa: nutrem os olhos de abundância e diversidade – alimentar e ecossistêmica.
•
Débora Pinto
Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, atua há vinte anos na produção e pesquisa de conteúdo colaborando e coordenando projetos digitais, em mídias impressas e na pesquisa audiovisual →
Fonte: https://oeco.org.br
Notícias em destaque














