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Reproduzindo os saberes ancestrais da “Terra Preta de Índio”, o biochar melhora a qualidade do solo e pode gerar créditos de carbono
As chamadas “Terras Pretas de Índio” são solos de origem antrópica, formados há séculos por populações indígenas amazônicas. Atualmente, esse produto, conhecido como biochar (ou biocarvão), desperta um grande interesse por seus efeitos agronômicos, sua contribuição para a melhoria dos atributos do solo e, mais recentemente, por ser uma forma eficaz de remoção de carbono de longa duração, podendo gerar créditos de carbono de alta integridade e valor de mercado.
Estudos mostram que as Terras Pretas de Índio resultaram da deposição contínua de resíduos orgânicos (restos alimentares, ossos, dejetos), fragmentos de cerâmica, cinzas e, principalmente o carvão pirogênico oriundo de fogueiras domésticas. Essa combinação aumentou de forma duradoura a fertilidade natural de solos pobres e intemperizados amazônicos, elevando os teores de matéria orgânica, macro e micronutrientes. E a presença de carvão estável explica essa longevidade na fertilidade, que permanece até os dias atuais.
Embora alguns estudos sugiram hipóteses alternativas, o consenso científico atual é que a Terra Preta foi resultado de um manejo indígena intencional, sendo considerada uma das primeiras evidências de agricultura sustentável na Amazônia. Esse conhecimento ancestral inspirou a ciência moderna a desenvolver o biochar (ou biocarvão), na tentativa de replicar e potencializar seus efeitos, melhorando a fertilidade do solo, aumentando sua capacidade de retenção de água e atuando como estratégia de sequestro de carbono no solo.
O que é biochar e como é produzido?
O biochar é um material carbonáceo sólido, obtido pela pirólise, processo de decomposição térmica de biomassa em ambiente com oxigênio limitado, com temperaturas entre 300°C e 700°C. Dependendo do processo da pirólise, os produtos obtidos são diferentes:
• Torrefação (<300°C) – carvão menos estável.
• Pirólise lenta (400°C) – maior rendimento em biochar (até 35% da massa da biomassa).
• Pirólise rápida (>500°C) – maior produção de bio-óleo e biogás.
• Gaseificação (>800°C) – maior produção de biogás (cerca de 85%).
As matérias-primas incluem resíduos agrícolas (palha de cana, casca de arroz, podas), resíduos urbanos (lodo de esgoto, restos alimentares) e dejetos animais. A escolha da matéria-prima impacta as propriedades finais, ou seja, biochar de origem animal concentram mais nutrientes (Ca, Mg, P), enquanto os de madeira apresentam maior estabilidade e menor teor de cinzas. Diferente do carvão tradicional, o biochar é produzido com foco em benefícios ambientais e agronômicos.
Características físico-químicas do biochar
As propriedades do biochar dependem tanto da biomassa quanto das condições de pirólise. Entre as mais relevantes estão:
Químicas:
• Alto teor de carbono (30–80%), com estruturas estáveis.
• Nutrientes como fósforo (P), potássio (K), cálcio (Ca) e magnésio (Mg) e micronutrientes (zinco (Zn) e manganês (Mn)).
• pH alcalino (8–10), resultante das cinzas minerais.
Físicas:
• Estrutura altamente porosa, contendo micro e macroporos.
• Elevada área superficial (100–500 m²/g), fundamental para retenção de água e nutrientes.
• Densidade aparente baixa, favorecendo aeração, infiltração e penetração das raízes no solo.
Físico-químicas:
• Alta capacidade de troca catiônica (CTC) devido sua elevada superfície específica.
• Polaridade e grupos funcionais (carboxilas, fenóis, quinonas) que melhoram a interação com nutrientes e microrganismos.
Benefícios agronômicos e ambientais
A aplicação do biochar em áreas agrícolas e florestais gera múltiplos ganhos:
Fertilidade do solo:
• Aumento da CTC e da disponibilidade de nutrientes.
• Neutralização da acidez, graças ao caráter alcalino.
• Redução da lixiviação de nitrogênio (N) e fósforo (P), funcionando como um fertilizante de liberação lenta.
Retenção de água:
• Aumento da capacidade de retenção de água do solo, variando entre 4% e 30% (Blanco-Canqui, 2017).
• Aumento de até 42% na água disponível no solo (Yang & Lu, 2021).
•
Saúde das plantas:
• Supressão de doenças de solo como a “Murcha de fusarium” em tomate (Fusarium oxysporum, reduzindo a severidade).
• Alteração da microbiota da rizosfera, estimulando microrganismos benéficos.
•
Ambiente e clima:
• Sequestro de carbono de longa duração: pesquisas indicam taxa de mineralização do carbono 70% menor comparada a deposição da biomassa original.
• Adsorção de metais pesados (como o cádmio (Cd), chumbo (Pb), zinco (Zn)), reduzindo a contaminação ambiental.
• Redução de emissões de N₂O em sistemas agrícolas (IPCC, 2019).•
Biochar e os créditos de carbono
O biochar é reconhecido por padrões internacionais como créditos de remoção de carbono, de alta integridade e longa permanência. Isso se traduz em créditos de carbono premium, com preços frequentemente superiores a US$ 100/tCO₂ e no mercado voluntário.
Atualmente, as principais metodologias aplicáveis para projetos para geração de créditos de carbono envolvendo a produção e a aplicação do biochar são:
• VM0044 (Verra): inclui aplicações no solo e uso em materiais permanentes, como cimento.
• Earth: mais simplificada, foca em condicionador de solo, exige certificação extra para biomassa florestal.
• Isometric: metodologia mais conservadora, contabiliza emissões desde a construção da planta até o fim de vida, garantindo robustez.
Além disso, a escolha da biomassa, sua umidade, presença de contaminantes e proximidade da planta de pirólise são fatores decisivos para viabilidade técnica e econômica do projeto.
Assim, biochar sintetiza o legado ancestral das Terras Pretas de Índio e inovação climática e o mercado de carbono. Ao mesmo tempo em que melhora a fertilidade, a retenção de água e a sanidade dos solos, oferece uma das formas mais seguras de sequestrar carbono em longo prazo. Nesse sentido, o biochar coloca-se no centro de um elo entre agricultura sustentável, economia circular e ação climática ao transformar resíduos em valor, aumentar a resiliência agrícola e gerar créditos de carbono de alta integridade, essenciais para enfrentar a crise climática.Marcos Siqueira Neto. Foto: Ambipar
Este conteúdo foi enviado por Marcos Siqueira Neto, especialista da Ambipar em projetos de carbono na agropecuária.
Quer saber mais? Essas são as referências bibliográficas:
• Andrade, C. A.; Puga, A. P. Biocarvão: uso agrícola e ambiental. In: Santos, G. A.; Silva, L. S.; Canellas, L. P.; Camargo, F. A. O. (org.). Entendendo a matéria orgânica do solo em ambientes tropicais e subtropicais. 2. ed. Porto Alegre: Metropole, 2023, 435-457.
• Blanco-Canqui, H. Biochar and soil physical properties. Soil Sci.Soc.Am. J., 81, 687-711, 2017.
• Domingues, R. R. et al. Efeito da aplicação de diferentes biocarvões sobre a capacidade de troca catiônica de latossolos tropicais. Rev. Bras. Ci. Solo, 44, e0190177, 2020.
• Falcão, N. P. S. et al. Fertilidade de solos antropogênicos da Amazônia (Terra Preta de Índio). Acta Amazônica, 39 (2), 467-476, 2009.
• Glaser, B. et al. Ameliorating physical and chemical properties of highly weathered soils in the tropics with charcoal – a review. Biol. Fertil. Soils, 35,219-230, 2002.
• International Biochar Initiative (IBI). Standardized product definition and product testing guidelines for biochar that is used in soil. IBI, 2015. Disponível em: https://biochar-international.org.
• IPCC. 2019 Refinement to the 2006 IPCC Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories. Geneva: Intergovernmental Panel on Climate Change, 2019.
• Jaiswal, A. K. et al. Suppression of Rhizoctonia solani-induced damping-off of cucumber by biochar amendment. Soil Biol. Biochem., 77, 267-277, 2014.
• Lal, R. Beyond COP 21:Potential and challenges of the “4 per thousand” Initiative. J. Soil Water Conserv. 71 (1), 20A-25A, 2016.
• Silva, R. A. et al. Biochar reduces Fusarium wilt and increases yield of tomato plants. Scientia Horticulturae, 272, 109565, 2020.
• Yang, Y.; LU, X. Biochar improves aggregate stability and water retention of a silty loam soil. Soil Till. Res., 209, 104938, 2021.
• VERRA. VM0044 – Methodology for Biochar Utilization in Soil and Non-Soil Applications, v. 1.2. Washington, DC: Verra, 2025. Disponível em: https://verra.org.
• ISOMETRIC. Biochar production and storage protocol, v. 1.0. London: Isometric, 2024. Disponível em: https://registry.isometric.com.
• PURO.EARTH. Biochar methodology – edition 2025. Helsinki: Puro.Earth, 2025. Disponível em: https://puro.earth.
https://ciclovivo.com.br/oquee/o-que-e-biochar/
Fonte: Redação CicloVivo
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